O Segredo de uma menina

10 de março de 2017
Fabricando Sonho


Ainda muita criança, beirando os seis anos de idade, morava com meus avós maternos e uma tia, numa cidadezinha do interior da Bahia. Um pouco distante do centro da cidade, quase num sítio que se chamava “Lagoa Comprida”. O que dividia o nosso sítio do centro era uma grande área de arame farpado e uma cancela ou “porteira” para alguns!
Lá era muito frio e vivíamos atrás de qualquer réstia de sol para aquecermos um pouco. Eram muito divertidas as tardes ensolaradas em que eu saía com minha avó ou minha tia e ficava na cancela para ver o movimento do centro da cidade; passavam pessoas para a missa, todas muito bem vestidas, passavam crianças que saiam da escola, passava o velho do quebra queixo sempre batendo seu triangulo, como que despertando nas crianças a vontade de comer um bom pedaço desse doce. Tudo para mim era novidade, eu me deliciava com aqueles momentos. Meu avô ficava sempre na cidade para cuidar dos negócios, e passava o fim de semana com a gente. Quando ouvíamos o rangido da cancela, aquele rangido comprido, pois ele abria até o fim para dar passagem a alguma tropa que ele trazia da cidade ou de outros lugares. Era uma alegria só. Até aí era tudo felicidade, a começar que eu era a neta privilegiada por ser a primeira. Nem minha tia e minha avó não me deixavam sentir falta da minha mãe, que até então eu não conhecia. “Aí é outra história!”
Eu me sentava no colo do meu avô, que me acarinhava e me contava histórias. Os parentes me prometiam que assim que minha mãe melhorasse, o mais breve possível, eu iria conhecê-la. Todos os carinhos necessários eu tinha, eles espalhavam afeto, dando sentido assim à minha infância, sem a presença da minha mãe.
Certo dia, eu e minha tia fomos dormir com meu avô, na casa grande da cidade e terminamos ficando a semana toda. Era de hábito meu avô tomar sol no quintal, antes do café da manhã, sentado em sua velha cadeira de vime debaixo das parreiras. Minha tia tirava o mais belo cacho de uva; todos ficavam dentro de um saquinho para ficar livre de agressões, e me chamava para eu levar para meu avô, que ao receber me colocava no colo e chupávamos todo o cacho.
O Segredo de uma menina

Faltando poucos dias para seguirmos todos para a Lagoa Comprida, eu já não aguentava mais de saudade de minha avó; tudo ocorria do mesmo jeito, mas só uma coisa saiu errada neste dia; eu acordei mais tarde e meu avô já se achava sentado na velha cadeira de vime, tomando o seu sol como de costume. Mas, o cacho de uva estava no chão... corri para pegá-lo na ânsia de ajudar, mas sua mão não dava sinal de vida. Sua cabeça estava toda virada para baixo como se ele estivesse tirando um belo cochilo. Chamei ligeiro  minha tia, que veio quase que voando, da cozinha para o quintal. Acudido por ela, e logo em seguida por outras pessoas, meu avô foi carregado para dentro de casa.
Minha tia se desespera! Ela chamou meu avô por várias vezes e ele não dava sinal de vida. Ele estava morto! Morrera ali... embaixo das parreiras com o seu cacho de uva na mão. Eu que não conhecia os mistérios da morte, fiquei ali no canto, assustada vendo o movimento de pessoas chegando e saindo; Meus tios, que moravam em outros lugares distantes, vizinhos prestando solidariedade, amigos... foi um verdadeiro pesadelo!
Na minha imaginação fantasiosa,  achava que tudo não passava de um sonho e que ao acordar estaria tudo do mesmo jeito. Por alguns momentos todos esqueceram a minha presença, todos choravam a morte de meu avô. No outro dia, quando acordei, lá estava meu avô no centro da sala, dentro de um enorme caixão coberto de saudades. Alguns rezavam, outros choravam, outros cochichavam; para mim, nada daquilo  fazia sentido, tinham me falado que eu não ia mais ver meu avô, que ele agora ia ficar com “papai do céu”. Minha tia chegou perto de mim, pegou-me no colo e fomos para o quintal. Nesse momento, chegaram mais dois tios e todos falaram ao mesmo tempo: - Lucinha, hoje você vai ficar com sua avó lá na Lagoa Comprida, “Necão” leva você. “Necão”, era uma espécie de servidor da família. – Só que você vai nos prometer não contar nada para sua avó. Não conte a ela que seu avô morreu, ela não pode saber, ouviu bem?
Amanhã iremos todos para lá. E assim, todos juntos, será mais fácil falar. Eu sinceramente não entendi nada.
Amanhã – continuou meus tios – sua mãe também estará aqui, você vai conhecê-la e se quiser irá morar com ela em uma cidade maior, que tem um rio muito grande para você brincar. Mas não conte nada ouviu bem? Outra coisa, quando o sino da igreja tocar, você chama sua avó para passear com você e fique na cancela para ver o enterro passar. Assim ela não ficará tão sentida quando souber a verdade. Levaram-me para Lagoa Comprida. Minha avó espantou-se ao ver Necão chegar comigo sozinha, mas logo ela se convenceu com a história que ele contou.
Quando ao cair da tarde,  ouvindo o sino tocar lembrei da triste incumbência de chamar minha avó para a cancela. Ela não desconfiou  nada, porque já era de costume fazermos estes passeios.
Passado alguns momentos, lá ao longe, se avistava uma multidão  caminhando lentamente, trazendo um caixão segurado por quatro pessoas. Naquela hora  senti que alguma coisa estava me angustiando, não chorei, não sorri, não falei nada; fiquei muda,  ainda era muito pequena para saber que espécie de sentimento era aquele que me oprimia o coração. Minha avó comentou comigo: - Lá vai mais um para a morada eterna! Deve ser gente muito importante dada a quantidade de pessoas que acompanham.
E assim,  passados quase cinquenta anos, olhando fotos antigas,  sei porque em todos os enterros de anjos e crianças que eu ia, lá estava eu na frente com a capela na mão. – Naquele tempo era de costume tirar foto de enterros e guardá-las como lembrança.
Era como se eu quisesse suplantar aquele momento tão único que tiraram da minha avó. Até hoje é a lembrança mais nítida da minha infância. Uma velha cadeira de vime, uma menina numa cancela vendo um enterro passar e sem poder falar com a avó, que aquele ali que iam levando... era o seu marido!

Lúcia Mariniello   

 A autora optou por não preservar a identidade!.


1 comentários:

  1. vdd,amigo!
    A vida é feita de lembranças.....umas boas....outras que marcaram pela tristeza!
    Bjos

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