A metade da laranja (Anderson Willian Ribeiro)

9 de agosto de 2016

A metade da laranja




  

           Quando a vi pela primeira vez, ela estava sentada na varanda de tia Judite. Tinha os olhos e os pensamentos distantes. Quando tia Judite me chamou para apresentá-la, ela voltou da distância e cumprimentou-me com um sorriso. Seu cabelo louro emoldurava o rosto levemente redondo que ainda guardava um pouco da beleza de outrora. Tinha agora 47 anos, fiquei sabendo depois. Não parecia envelhecida, mas sim sofrida. Ou cansada. Cansada não de labor, mas sim da caminhada diária. Tinha as mãos pousadas sobre o colo coberto com um vestido simples, porém bonito. Não sei por que, mas achei-a parecida com uma camponesa alemã. Logo senti simpatia por ela e, pelo seu singelo sorriso, percebi que ela também tivera o mesmo sentimento por mim.
            Sentei-me de frente para ela na velha cadeira de madeira maciça, enquanto tia Judite nos servia seu café que acabara de passar. O café fragrante reacendeu-nos o ânimo. Técia sorriu.
            Tia Judite virou-se para mim e disse:
            - Técia está muito bem, Cecília. Está trabalhando numa confeitaria. Faz bolos lindos!
            - Que bom! – Respondo alegre, embora não soubesse nada sobre a vida de Técia. Mas com certeza sua vida fora um caminho de agruras. Isso eu podia sentir.
            - Esqueci-me dos bolinhos! – Exclamou tia Judite, enquanto levantava-se da cadeira num salto, dirigindo-se em seguida à cozinha. Voltou com uma travessa de bolinhos de chuva envolvidos com açúcar e canela.
            - Que cabeça a minha! Já ia me esquecendo dos bolinhos! Estou querendo fazer qualquer dia desses uns bolinhos de sal. Comi na casa de dona Odete. Ela escalda a massa antes, fica uma delícia!
            Concordamos com sorrisos.
            Técia comeu um bolinho, tomou um gole de café e começou a contar sua história


            II

            “Sempre fui uma tolinha. Acreditava piamente que um dia conheceria um homem que me traria toda a felicidade do mundo após nos casarmos. Me empenhei em ser uma futura boa esposa, aprendendo segredos do lar. Já era prendada, mas queria ser excelente. E acho que consegui. Pelo menos superei as demais moças de minha idade em diversas qualidades. Meu enxoval era perfeito, tudo de muito bom gosto, escolhido a dedo. Eu era a moça perfeita pra casar. Agora só faltava a “outra metade da laranja.” E não demorou muito: Um dia, após fazer umas compras em São Fidélis, eu vi Romualdo. Ele estava numa loja de produtos agropecuários. Ele me olhou tão violentamente que me golpeou. Ali eu já sabia que ele seria o homem forte e trabalhador do qual eu seria a fiel auxiliadora, dona de casa dedicada e amante. Após uma abordagem dele, conversamos e, em alguns meses, noivamos. Depois, o casamento. Pronto! Eu havia encontrado a minha outra metade! Já não era uma metade solitária de laranja, mas sim uma laranja completa. Estava começando a trilhar a estrada da felicidade! Que mais queria eu?! Tinha então alcançado o clímax da vida, o estado tão almejado, tão sonhado! E começamos então a viver nossa vida de casados e, com o passar dos anos, comecei a entender certas coisas. Uma dessas coisas que eu passei a entender foi que Romualdo não era a minha outra metade. Mas não é só isso. Eu entendi mais. Romualdo era uma laranja inteira, não fazia concessões, era ele mesmo. Eu também era uma laranja inteira mas, após tantas concessões, tantos sonhos, tantos projetos, tantas anulações de mim mesma, tanta dedicação a uma utópica situação futura, eu fui cortada pela metade. Eu sou uma metade da laranja: cortada pelas minhas expectativas frustradas, meus sonhos vagos e ilusórios. Ninguém é metade, isso eu aprendi, isso eu entendi. Somos inteiros e, a felicidade a dois é encontrada quando dois inteiros se encontram no mesmo cesto. Não duas metades tentando se colar, mas dois inteiros num relacionamento de companheirismo, sinceridade e amor. Agora eu era uma metade. Perdi a outra metade de mim no caminho das ilusões. Romualdo se foi. Ele permanecera inteiro, refaria logo a vida, e o fez: casou-se com outra mulher, lá de Itaocara. Eu fiquei sozinha naquela casa cheia de cômodos vazios, cômodos que eu sonhara em preencher com filhos e felicidade. “Felizes para sempre” não foi um epigrama para a minha vida. Fiquei muito tempo prostrada no tempo e na vida. Perdi todas as esperanças e objetivos. Mas estou me reerguendo agora. Estou feliz trabalhando na confeitaria. Agora vejo que posso encontrar alegria e satisfação ao longo da caminhada, em cada momento. Não ponho mais minha vida num projeto futuro. Fui cortada pela metade, mas não por inteiro.”
            Comeu mais um bolinho e tomou mais um gole de café. E ficou com o olhar distante.




Anderson Willian Ribeiro


 APRECIAÇÃO

Quando recebi esse conto para apreciar, realmente fiquei encantada com a escrita desse amigo, que humildemente solicita uma opinião sobre seu conto e se há realmente uma arte literária em suas palavras!
Não sou Crítica Literária, apenas amo as palavras e insisto na arte da Escrita por Amor.
O conto é muito real, pois na verdade há sempre esse sentimento enganoso dentro dos jovens, de que encontrarão a outra parte da laranja, mas somos únicos e inteiros, sozinhos dentro de nós mesmos, não há dúvida alguma de que lutamos a vida inteira por sucesso, amor, família, mas há uma solidão inconsciente em nosso ser, e acredito que só na maturidade nos damos conta desse fato!
Devemos focar em nossos objetivos, os amores e os amigos caminham conosco, mas a jogada final é nossa, não há quem viva por nós, temos direito a escolhas.
Crescemos muito quando conseguimos nos aceitar como "inteiros!"
Amei esse conto, reflexão profunda em todo o contexto do escritor Anderson.
Bravo!
Muito criativo e bem elaborado, sucesso!


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