Raul Seixas: o maluco consciente beleza

30 de junho de 2016
Raul Seixas

 Na vida e na obra, Raul Seixas cantou o desapego e a finitude humana num mundo que pedia certezas. Por isso era incompreendido.

Sua música é a indignação em estado bruto. Não que lhe falte poesia, mas para ele isso é só um acessório: seu grito é mais agudo, rudimentar, e está em primeiro plano. Por isso, quando bate, derruba. Porque ninguém como ele pegou as regras para se vencer na vida (“uma grande piada”) e virou tudo de ponta-cabeça.

E colocou em xeque, junto com parceiros notáveis (como Paulo Coelho, destaque no filme), valores sacrossantos como a fidelidade (“o amor a dois profana o amor de todos os mortais”), a lealdade (“porque quando eu jurei meu amor eu traí a mim mesmo”), o sucesso (“eu devia estar contente porque tenho um emprego, sou o dito cidadão respeitado e ganho 4 mil cruzeiros por mês”), a amizade (“hoje eu te chamo de careta e você me chama vagabundo”), a família (“eu calço é 37, meu pai me dá 36.

Dói, mas, no dia seguinte, aperto meu pé outra vez”), a sabedoria (“antes de ler o livro que o guru te deu você tem que escrever o seu”), a divisão entre o bem e o mal (“o mais puro gosto do mel é apenas defeito do fel”), o Estado (“e sempre que você dorme de toca ele fatura em cima do inimigo”), a religião (“a madre da escola te ensina a reconhecer o pecado e o que você sente é ruim: mas, baby, Deus não é tão mau assim”), a carreira ("é você olhar no espelho e se sentir um grandessíssimo idiota, saber que é humano, ridículo e limitado e que só usa 10% de sua cabeça animal”), a coerência (“eu prefiro ser essa metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo”), a obediência (“por que você não para um pouco de fingir e rasga esse uniforme que você não quer? Mas você não quer: prefere dormir e não vê”), a escola (“e o professor não saiu pra lecionar pois sabia que não tinha mais nada pra ensinar no dia em que a Terra parou”).

O pano de fundo era um só: a derrota cantada num mundo feito para pretensos vencedores. Ele admitia, sem firulas, o tédio, o cansaço, o desencanto. E, em quase todas essas músicas, guardava um questionamento em comum: o que há depois disso tudo? O que realmente importa nessa vida?

Os relatos sobre esse desapego e a noção exata da finitude humana são uma constante em todo o filme.

Mas nesse encontro entre vida e obra, bebedeiras e abandonos (de sonhos, da família, dos amigos), ainda havia tempo para esperança. Raul se queixava do pessimismo encarnado pelos jornais tomados de “sangue” e garantia: “a gente ainda nem começou”. E, em Ave Maria da Rua, para mim a mais intensa de todas as suas composições, pede: “Segure a minha mão quando ela fraquejar e não deixe a solidão me assustar”.

Raul morreu às portas do Fim da História, decretado após a queda do muro de Berlim, dos anos Collor, do boom da lambada e do axé. Sorte dele, que já não suportava o que via – e vivia em bebedeira eterna para poder ver tudo claramente, sem dor. Sabia dos tempos que estavam por vir.

Morreu em pé, como lembrou Marcelo Nova no documentário, aplaudido e adorado, perto de seu público – apesar do esforço para não desabar, ainda restou o último fôlego para fazer seu último, e brilhante, disco “A Panela do Diabo”.

Raul foi, de longe, o maior nome do rock brasileiro. Mesmo cantando a dúvida num mundo que pedia (e pede) certezas. Um mundo que manda obedecer e não contestar, limpar a bota de quem está em cima e chutar quem está embaixo para um dia se tornar um dos novos bilionários da Forbes. Para ele, tudo isso era passageiro, inútil. “Um saco”, como passear no jardim zoológico para dar pipoca aos macacos.

Raul Seixas era um filósofo antes de ser um músico. Se fosse apenas músico, não se diferenciaria muito de Sílvio Brito. É claro que, se fosse apenas filósofo, não se diferenciaria de qualquer louco loquaz comum e ninguém prestaria atenção nele. É a combinação de uma percepção original (e às vezes geniais) do mundo, aliada à sua capacidade de transformar isso em música (e letra) que faz de Raul Seixas um personagem fundamental da cultura brasileira. Sei que neste NÃO muito se falará das qualidades artísticas de Raul Seixas, de modo que vou tentar me concentrar em seus postulados filosóficos.

A importância, hoje, de lembrar Raul Seixas é constatar a derrota da nossa geração, que construiu alguma cultura para cuspir na estrutura, mas não a desestabilizou nem um pouco. A democracia representativa, que está morta faz tempo, segue como o único modelo prático de organização política. Que tristeza... A antiga família patriarcal, a "célula mater da sociedade", continua como único modelo de organização social. Que caretice! E o capitalismo, que antes pelo menos tinha pesadelos com o socialismo, agora posa de único modelo econômico possível num mundo globalizado (argh!). Que horror.


A "sociedade alternativa", que um dia já pareceu tão possível que levou Raul a ser interrogado e torturado pela ditadura ("Me diz aí o nome dos integrantes dessa sociedade...") hoje não assustaria nem aos arapongas neo-liberais do Fernando Henrique. Todos se dizem alternativos. Há uma música alternativa, um teatro alternativo, um cinema alternativo. Mas uma "sociedade alternativa" não há. Talvez nunca haja.

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