Na
vida e na obra, Raul Seixas cantou o desapego e a finitude humana num mundo que
pedia certezas. Por isso era incompreendido.
Sua
música é a indignação em estado bruto. Não que lhe falte poesia, mas para ele isso
é só um acessório: seu grito é mais agudo, rudimentar, e está em primeiro
plano. Por isso, quando bate, derruba. Porque ninguém como ele pegou as regras
para se vencer na vida (“uma grande piada”) e virou tudo de ponta-cabeça.
E
colocou em xeque, junto com parceiros notáveis (como Paulo Coelho, destaque no
filme), valores sacrossantos como a fidelidade (“o amor a dois profana o amor
de todos os mortais”), a lealdade (“porque quando eu jurei meu amor eu traí a
mim mesmo”), o sucesso (“eu devia estar contente porque tenho um emprego, sou o
dito cidadão respeitado e ganho 4 mil cruzeiros por mês”), a amizade (“hoje eu
te chamo de careta e você me chama vagabundo”), a família (“eu calço é 37, meu
pai me dá 36.
Dói,
mas, no dia seguinte, aperto meu pé outra vez”), a sabedoria (“antes de ler o
livro que o guru te deu você tem que escrever o seu”), a divisão entre o bem e
o mal (“o mais puro gosto do mel é apenas defeito do fel”), o Estado (“e sempre
que você dorme de toca ele fatura em cima do inimigo”), a religião (“a madre da
escola te ensina a reconhecer o pecado e o que você sente é ruim: mas, baby,
Deus não é tão mau assim”), a carreira ("é você olhar no espelho e se
sentir um grandessíssimo idiota, saber que é humano, ridículo e limitado e que
só usa 10% de sua cabeça animal”), a coerência (“eu prefiro ser essa
metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo”), a
obediência (“por que você não para um pouco de fingir e rasga esse uniforme que
você não quer? Mas você não quer: prefere dormir e não vê”), a escola (“e o
professor não saiu pra lecionar pois sabia que não tinha mais nada pra ensinar
no dia em que a Terra parou”).
O
pano de fundo era um só: a derrota cantada num mundo feito para pretensos
vencedores. Ele admitia, sem firulas, o tédio, o cansaço, o desencanto. E, em
quase todas essas músicas, guardava um questionamento em comum: o que há depois
disso tudo? O que realmente importa nessa vida?
Os
relatos sobre esse desapego e a noção exata da finitude humana são uma constante
em todo o filme.
Mas
nesse encontro entre vida e obra, bebedeiras e abandonos (de sonhos, da
família, dos amigos), ainda havia tempo para esperança. Raul se queixava do
pessimismo encarnado pelos jornais tomados de “sangue” e garantia: “a gente
ainda nem começou”. E, em Ave Maria da Rua, para mim a mais intensa de todas as
suas composições, pede: “Segure a minha mão quando ela fraquejar e não deixe a
solidão me assustar”.
Raul
morreu às portas do Fim da História, decretado após a queda do muro de Berlim,
dos anos Collor, do boom da lambada e do axé. Sorte dele, que já não suportava
o que via – e vivia em bebedeira eterna para poder ver tudo claramente, sem
dor. Sabia dos tempos que estavam por vir.
Morreu
em pé, como lembrou Marcelo Nova no documentário, aplaudido e adorado, perto de
seu público – apesar do esforço para não desabar, ainda restou o último fôlego
para fazer seu último, e brilhante, disco “A Panela do Diabo”.
Raul
foi, de longe, o maior nome do rock brasileiro. Mesmo cantando a dúvida num
mundo que pedia (e pede) certezas. Um mundo que manda obedecer e não contestar,
limpar a bota de quem está em cima e chutar quem está embaixo para um dia se
tornar um dos novos bilionários da Forbes. Para ele, tudo isso era passageiro,
inútil. “Um saco”, como passear no jardim zoológico para dar pipoca aos
macacos.
Raul
Seixas era um filósofo antes de ser um músico. Se fosse apenas músico, não se
diferenciaria muito de Sílvio Brito. É claro que, se fosse apenas filósofo, não
se diferenciaria de qualquer louco loquaz comum e ninguém prestaria atenção
nele. É a combinação de uma percepção original (e às vezes geniais) do mundo,
aliada à sua capacidade de transformar isso em música (e letra) que faz de Raul
Seixas um personagem fundamental da cultura brasileira. Sei que neste NÃO muito
se falará das qualidades artísticas de Raul Seixas, de modo que vou tentar me
concentrar em seus postulados filosóficos.
A
importância, hoje, de lembrar Raul Seixas é constatar a derrota da nossa
geração, que construiu alguma cultura para cuspir na estrutura, mas não a
desestabilizou nem um pouco. A democracia representativa, que está morta faz
tempo, segue como o único modelo prático de organização política. Que
tristeza... A antiga família patriarcal, a "célula mater da sociedade",
continua como único modelo de organização social. Que caretice! E o
capitalismo, que antes pelo menos tinha pesadelos com o socialismo, agora posa
de único modelo econômico possível num mundo globalizado (argh!). Que horror.
A
"sociedade alternativa", que um dia já pareceu tão possível que levou
Raul a ser interrogado e torturado pela ditadura ("Me diz aí o nome dos
integrantes dessa sociedade...") hoje não assustaria nem aos arapongas
neo-liberais do Fernando Henrique. Todos se dizem alternativos. Há uma música
alternativa, um teatro alternativo, um cinema alternativo. Mas uma
"sociedade alternativa" não há. Talvez nunca haja.
Marcos,
ResponderExcluirvdd!
Volte sempre,amigo poeta!
Gosto das músicas dele :)
ResponderExcluirBeijos
O Mundo de Marina
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Eu amo as músicas de Raul Seixas!
ExcluirBjos,amiga!
Eu também adoro Marina, as letras transcendem a melodia.
ExcluirExtremamente original Marcos! Fora do seu tempo.
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