Por Thiago Muniz
Mais
de vinte anos após a morte do humorista, a sua imagem é hoje usada por quem se
ressente por não poder esculachar minorias sem provocar ofensas.
Quem
acompanhou as homenagens ao humorista Antonio Carlos Bernardes Gomes, o Mussum,
morto há exatos 20 anos, imagina que o Brasil era um lugar puro, ingênuo e
agradável no tempo dos Trapalhões. Não havia maldade, não havia patrulha, não
havia preconceito. Tal qual Adão e Eva no Paraíso, toda a maldade estava nos
olhos de seus criadores, os chatos que inventaram de inventar o pecado e a
escuridão e transformaram brincadeira em ofensa e alegria, em constrangimento.
Por
algum motivo, o histórico dos Trapalhões se tornou exemplo de como era possível
viver em harmonia, sem patrulhas nem amarras politicamente incorretas, até bem
pouco tempo atrás. A perda dessa “inocência” é lamentada por quem vê no Mussum,
um ator e músico de talento incomparável, o símbolo de um período permissivo,
libertário e saudável. Um tempo em que o da poltrona podia ver um negro
alcoólatra sacaneando um cearense cabeça chata, que sacaneava o travesti
desbocado, que sacaneava o negro banguela.
É
sempre delicado analisar, de forma isenta, o que formou e faz parte da nossa
memória afetiva. Os Trapalhões são parte dessa memória, pelo menos da minha,
que passei boa parte da vida chegando em casa ansioso depois dos passeios de
domingo para assistir ao programa da TV Globo. Até hoje me pego rindo à toa das
esquetes, algumas disponíveis no YouTube graças às almas mais altruístas. Mas
me incomoda um discurso comum entre os antigos fãs do quarteto: naquele tempo
não tinha maldade. Como me incomoda o uso da imagem do Mussum como prova desse
discurso: “Olha só, batíamos nele e ele nem ligava”.
Aparentemente
não ligava mesmo, e isso torna a discussão ainda mais complicada – algo como
“se ele não se ofendia, quem sou eu para me ofender por ele?” Mas, zapeando
pela internet, encontrei recentemente uma entrevista antiga do comediante à
revista humorística Casseta. Me perguntei se aquela entrevista seria aceita
hoje e os porquês. Foi o encontro de dois tipos de humor, que tiveram o seu
tempo, e hoje talvez não produzissem o mesmo efeito por um motivo simples:
evoluímos. Aos trancos, e não na velocidade ou totalidade que deveríamos, mas
evoluímos.
Na
entrevista é possível rir em muitos momentos e vivenciar o clima de
despojamento da época e do bar onde foi gravada.
Mas
há uma certa melancolia ao tropeçar no velho humor sexista e homofóbico do
Casseta e Planeta, grupo que fez sucesso nos anos 1990 sem que parte dos seus
integrantes tivesse saído da fase anal.
A
cada quatro perguntas, três tinham alguma pegadinha de duplo sentido. Você deu?
Sentou? Entrou? É chegado? É de fora pra dentro? E gargalhadas.
Alguém,
certificando-se de não estar sendo vigiado, poderia confessar: “Foi engraçado,
vai?”. E outros poderiam dizer: engraçado para quem?
Na
história dos movimentos sociais, só quem sofreu todos os preconceitos na carne
(ou na pele) pode dizer quantos anos foram congelados no tempo graças às piadas
que ridicularizavam determinados tipos sociais.
Quantos
anos de luta e sofrimento foram desmoralizados pela ofensa preservada no
estereótipo da bicha louca, do negro burro, do judeu (ou o turco/árabe)
muquirana, da vizinha devassa?
No
caso do Mussum, apelido dado por Grande Otelo em referência a um peixe liso, a
história é um pouco mais complexa. Primeiro porque nem ator nem personagem eram
totalmente ingênuos, como hoje parecem ser lembrados.
O
primeiro aprendeu a se virar desde cedo, quase sempre em grupo, no morro, no
bar, na Aeronáutica, no teatro, na roda de samba, no estúdio da tevê. O segundo
rebatia provocações e não levava desaforo para casa – “negro é seu passado”.
A
negação à questão causava desconforto aos grupos antirracismo já na época. Na
entrevista, Mussum comentava a reação do movimento negro a uma frase de Renato
Aragão ao ver integrantes de sua família em uma piscina: "Pensei que fosse
uma sopa de berinjela”. Mussum dizia não entender a gritaria.
Argumentava
que também sacaneava os cearenses, caso do colega, chamando-os de cabeça de
passar roupa. E que ninguém se ofendia por isso.
Talvez
seja esse o fator de nostalgia de quem hoje vê no período um tempo de
inocência: o tempo em que uma minoria podia sacanear outra minoria em canal
aberto e ninguém dizia se ofender por isso.
Na
mesma resposta, Mussum dizia não aceitar as críticas de que não ajudava os
negros, e citava como exemplo o fato de alimentar vários deles em sua casa.
E
terminava dizendo estar disposto a debater o racismo apenas em casos de
discriminação expressas, caso alguém dissesse, por exemplo, ter sido proibido
de entrar em determinados lugares por causa da cor.
A
entrevista é de outubro de 1991. Mussum já havia visto e vivido muito da vida.
Consolidara uma carreira brilhante com uma generosidade ímpar, como atestam
todos os testemunhos sobre ele desde a sua morte. Mas não parecia ter se dado
conta a tempo do quanto servia a um discurso violento, que na prática, e fora
das telas, provocava mais choro do que gargalhada – ao menos para quem era
diariamente maltratado e/ou ridicularizado por causa da cor da pele.
O
Brasil dos tempos dos Trapalhões, como o Brasil de hoje, não era um País
inocente. Era um País onde a maioria da população era negra ou morena, mas não
era maioria nas universidades, nos postos de destaque de empresas, nos
gabinetes públicos, nos sistemas de representação, na produção científica, nos
tribunais e até nos shoppings. Era maioria, no entanto, nas ruas, nos grupos de
jovens abandonados, nos morros, nas cadeias, nas fotos com tarja preta dos
jornais.
No
Brasil do tempo dos Trapalhões, como o Brasil de hoje, poucos admitiam ter
preconceito, e poucos seriam capazes de barrar a entrada de alguém em um espaço
público pela cor da pele. Como hoje, e como em outros países, havia quem
atirasse bananas para jogadores negros ou mulatos no campo, mas só porque eram,
como ainda são, protegidos pelo anonimato da arquibancada.
Ao
pé do ouvido, e certificando-se de não estar sendo vigiado, havia, como ainda
há, quem colocasse em prática os mecanismos invisíveis de seleção, a começar
dentro de casa, na escolha das companhias dos filhos (sobretudo das filhas), no
discurso de dois pesos e duas medidas a depender da cor de quem prestava um
serviço (ou uma barbeiragem no trânsito ou um chute torto no jogo de futebol)
ou nas piadas inocentes que mantinham todos na mesma posição herdada dos avós,
quando a escravidão formal fora substituída por outras formas de escravidão.
Naquele
Brasil, o personagem negro e alcoólatra sacaneava o cearense cabeça chata, que
sacaneava o travesti desbocado, que sacaneava o negro banguela – para alegria
dos patrões brancos que não entravam na trama.
O
Brasil de hoje não é tão diferente do Brasil dos Trapalhões, mas o acumulado de
anos, lutas, instrumentos de políticas públicas, campanhas e debates começam a
produzir um mínimo de constrangimento a velhas gracinhas antigamente aceitas e
transmitidas de pais para filhos.
Tempos
atrás, o integrante de uma banda de um stand up comedy abandonou o espetáculo
ao ser chamado de “macaco” por um comediante branco diante de uma plateia de
maioria branca. Esses são os tempos de consciência que a casa grande confunde
com hipocrisia: os tempos em que os anos de sofrimento e luta não estão
expostos para o riso, nem dos amigos, nem da plateia. Uma pena que Mussum não
tenha vivido para ver. E uma pena que sua imagem, entre genial e inocente, seja
usada hoje para apelos ao retorno de outros tempos: os tempos em que a risada
era a única arma disponível contra o esculacho dos séculos de escravidão não
abolida.
40 coisas incríveis
que você provavelmente não sabia sobre a vida e a carreira do Mussum:
1.
Foi Grande Otelo quem deu o apelido de “Mussum” para Antônio Carlos Bernardes
Gomes.
2.
Isso aconteceu de improviso durante a participação dos “Originais do Samba”,
grupo do Mussum, em um programa de TV junto com Grande Otelo.
3.
Chico Anysio foi quem deu o conselho para que Mussum falasse com “is” no final,
tipo “Como de fatis”, “tranquilis” e “não tem problemis”.
4.
Na época, ele ainda não era humorista “assumido” e fazia algumas participações
na “Escolinha do Professor Raimundo.”
5.
O convite para Mussum entrar para “Os Trapalhões” foi de Dedé Santana, que era
fã de “Originais do Samba”.
6.
Mussum fabricava seu próprio reco-reco.
7.
Ele serviu a aeronáutica e aprendeu a tocar bateria lá.
8.
Mussum passou por um treinamento para enviar mensagens em código Morse.
9.
Antes da fama, ele também fez curso de ajustador mecânico.
10.
Mussum tinha licença de Cabo Arraiz para dirigir lanchas.
11.
Certa vez, ele pintou uma lancha de verde e rosa em homenagem à Mangueira.
12.
Mussum se arriscou no ramo das empreiteiras, montando a Construtora Ébano.
13.
Mussum foi diretor da Ala das Baianas da Mangueira.
14.
Ele era muito querido pelas baianas, mas também considerado um diretor bem
rígido.
15.
Mussum usou a gíria “Lepo Lepo” muito antes do Psirico e em dois momentos
diferentes.
16.
O primeiro foi na música “Because Forever”, gravada para o seu disco solo em
1986, e o segundo foi numa entrevista nos anos 1990 para a revista Casseta
Popular.
17.
Uma das primeiras músicas composta por Zeca Pagodinho a fazerem sucesso foi
gravada por Mussum e se chama “Chiclete de Hortelã”.
18.
Mussum era fã também de bossa nova e gravou a música “Rio Antigo”, sobre as
belezas da cidade maravilhosa nos anos 1940, junto com Chico Anysio.
19.
Ele também gravou “Nega Besta”, composta por João Nogueira.
20.
A música conta a história de uma moça “que tem a boca torta e diz que fala
ingleizis”.
22.
Mussum ainda gravou uma música de Vinícius de Moraes.
23.
E três do Adoniram Barbosa: “Samba do Arnesto”, “Saudosa Maloca” e “As
Mariposas”.
24.
Ganhou um festival ao lado de Elis Regina.
25.
Mussum ficou muito amigo de Garrincha por tocar com Elza Soares na boate
Fred’s.
26.
Essa amizade durou a vida inteira e Mussum foi visitar Mané quando estava
internado.
27.
Mussum contracenou com Hebe Camargo e Ronald Golias em uma encenação de “Romeu
e Julieta” na TV Record nos anos 60.
28.
Ele interpretou Jesus Cristo no filme “Os Trapalhões no Auto da Compadecida”.
29.
Ele era amigo pessoal de Solange Couto (a Dona Jura), que contracenou na novela
América com seu filho Mussunzinho.
30.
Mussum era chamado de Caco pelos familiares, por causa do boneco dos Muppets.
31.
Certa vez, Mussum tomou umas porradas de Bud Spencer. (Bud Spencer e Terence
Hill participaram dos Trapalhões.)
32.
Mussum declarou apoio à candidatura de Maluf à presidência.
33.
Mussum adotou o Corinthians como segundo time do coração quando morou em São
Paulo, entre 1967 e 1976.
34.
Isso aconteceu porque Mussum não conseguia assistir todos os jogos do Flamengo
e era próximo dos integrantes da escola de samba Camisa Verde-e-Branco, que era
um reduto de corinthianos.
35.
Ele tinha uma bandeira do Flamengo autografada por Zico em casa.
36.
Mussum colaborou com diversos projetos sociais nas décadas de 80 e 90.
37.
Dentre eles, a doação de um consultório odontológico para a Comunidade do Morro
da Mangueira.
38.
No comercial da campanha do Programa Nacional de Prevenção da Cárie Dental, ele
dizia “dente cariado não tem graça nenhumis”.
39.
No bairro do Morumbi, em São Paulo, há uma rua com o nome de “Rua Comediante
Mussum”.
40.
Ela fica bem perto da Rua Comediante Zacarias.
BIO
Thiago
Muniz tem 33 anos, colunista dos blog "O Contemporâneo", do site
Panorama Tricolor e do blog Eliane de Lacerda. Apaixonado por literatura e
amante de Biografias. Caso queiram entrar em contato com ele, basta mandarem um
e-mail para: thwrestler@gmail.com. Siga o perfil no Twitter em @thwrestler.
Verdadeiras estrelas, que jamais se apagam!
ResponderExcluirAbraços
verdade ,amiga!
Excluirbjos!
Sem dúvida Maria Teresa, suas obras serão eternas.
ExcluirvERDADE,AMIGO!
ResponderExcluirbjos
Incrível Thiago...eu preciso te acompanhar mais de perto...seu texto tem um despertar!!!!Parabéns...sucesso...muita luz na sua vida!
ResponderExcluirObrigado Inallucia pelo carinho !!!
ExcluirBjs !!!
Incrível Thiago...eu preciso te acompanhar mais de perto...seu texto tem um despertar!!!!Parabéns...sucesso...muita luz na sua vida!
ResponderExcluirObrigado Inallucia pelo carinho !!!
ExcluirBjs !!!
Obrigada,amiga!
ResponderExcluirBjos
Nossa que matéria completinha! Adoro essas matérias especiais postadas aqui!! Tantos fatos curiosos sobre o Mussum que nem imaginada. É... o humor antigo era diferente do novo. Não sei... essa conversa dá pano para manga.
ResponderExcluirTenha um ótima começo de semana.
Beijos,
Monólogo de Julieta
Paloma,
Excluirmuito obrigada!
Bjos
Obrigado por prestigiar Paloma!!!
ExcluirBjs
Você disse tudo Marcos.
ResponderExcluirAbs
Obrigado Marina!!!
ResponderExcluirBjs