B.B.King, o mito que se tornou o Deus do Blues(Colaborador Thiago Muniz)

29 de abril de 2016
B.B.King



 

BB King é personagem-chave para entender o blues. Músico aprendeu o gênero e o deglutiu ainda em seu berço rural.

 

Mitos crescem na medida em que estão mais distantes e etéreos, inalcançáveis, impalpáveis. Deles, curtimos a aura apenas.

 

Bem mais complicado é viver como um mito, entre nós, anônimos habitantes do planeta. B.B. King, o rotundo dono de Lucille sua idolatrada guitarra, o mais famoso instrumento do mundo do blues brilha entre os bluesmen, contracena com mitos pop como Bono, Santana, Eric Clapton ou com cantoras de jazz como Diane Schuur. Espalha sua arte única com generosidade, sem nenhuma parcimônia.

 

Compartilha seu talento com todo mundo, como reza o espírito comunitário que viu nascer o gênero, ainda nos campos de algodão, nas décadas finais do século 19.

 

Os escravos obrigados a cantar hinos religiosos protestantes junto com seus donos preservavam sua música nos dias de trabalho duro e nas noites regadas a Bourbon.

 

A música divina (o gospel) gerou de suas entranhas a música do diabo (o blues), já rezava um clássico blues de Robert Johnson.

 

Formalmente, o blues é o gênero mais simples das músicas populares, com seus doze compassos e uma harmonia de três acordes.

 

Mas a bem-comportada harmonia da música europeia branca misturou-se com as escalas africanas, gerando as “blue notes” que fazem a glória dos grandes guitarristas como B.B. King. Uma forma decisiva para os partos do jazz, seu filho dileto no início do século 20, e do rock, seu neto, já nos anos 50.

 

King é personagem-chave do blues porque aprendeu o gênero e o deglutiu ainda em seu berço rural no Delta do Mississípi; e, logo depois da Segunda Guerra Mundial, foi um dos grandes, se não o maior, responsável por sua urbanização. Trocou os anéis e as cordas de arame pelas nascentes guitarras, muito mais poderosas.

 

Mas manteve as raízes intactas. Por exemplo, o gospel, sempre presente em seu jeito de cantar cheio de fervor (religioso, diriam os mais fanáticos, mesmo com temas libidinosos). Por outro lado, absorveu as “modernidades” urbanas. Encantouse com a guitarra elétrica de Charlie Christian e de T. Bone Walker. Mas não os imitou. Criou um estilo próprio, de longas notas lancinantes e vibratos muito amplos. Imagine alguém capaz de fundir, no toque e na voz, as raízes com um refinamento inesperado. Desse modo, BB King levava ao delírio as plateias negras e ao mesmo tempo conquistava os brancos empertigados.

 

Ele gravou centenas de discos ao longo de mais de meio século de carreira. Existem muitas coletâneas “best of”. Melhor ficar com dois “meetings”. Primeiro, o “summit” inigualável, gravado em 2000, com Eric Clapton. Riding with the King compõe-se de 12 clássicos do blues, como Ten long years, Worried life Blues, Three O’Clock Blues e, claro, a faixatítulo.

Antológico.

 

E em Heart to Heart, CD de 1994, a Lucille de King namora com o piano e a voz de Diane Schuur. Eles cantam e tocam de tudo. Até I can’t stop loving you e It had to be you, evocando outro gênio, Ray Charles, de percurso semelhante ao de King: transplantou o balanço gospel para o rhythm’n’blues.

 

Sozinho, com Clapton ou Schuur, ele jamais perde a realeza. Pudera, ele “é” o blues encarnado.

 

Uma noite de inverno definiu quem era BB King. Foi no Arkansas, em 1949, quando ele tocava músicas de Pee Wee Crayton para animar o baile. Era então um garoto de 24 anos com sua guitarra Gibson L30 que havia acabado de comprar e turbinar com um captador a mais.

 

Estava feliz e realizado mesmo na noite fria, aquecida pelos rodopios dos casais que um dia chamariam aquilo de rock and roll e pelo querosene que queimava dentro de um latão de lixo colocado no canto do salão. As vozes então ficaram mais altas do que os solos e dois rapazes se agarraram aos socos. Saíram rolando pelo salão, derrubaram o latão e só pararam quando as chamas se alastraram pela casa. King, seus músicos e todos os dançarinos saíram quase juntos pela única porta do bar. Mas Lucille, não.

 

O fim de Lucille, escreveu BB King em seu livro de memórias batizado Corpo e Alma do Blues, lançado em 1996, seria seu fim também. Desnorteado, ele livrou-se dos amigos que tentavam contê-lo e correu pelas chamas para buscá-la. As vigas da casa já caíam quando ele a avistou. E assim descreveria o episódio, quase 50 anos depois: “Salto a viga no momento em que a parede desmorona atrás de mim. Abaixo a cabeça, abraço a guitarra e parto como um raio para fora. A noite é uma visão maravilhosa. Minhas pernas estão chamuscadas, mas minha guitarra está bem”.

 

A história se tornou um clássico e Lucille, o nome da mulher pela qual os dois rapazes se engalfinharam naquele bar, ficou para sempre. “Com a possível exceção do sexo de verdade com uma mulher de verdade, nada me traz tanta paz de espírito quanto Lucille”, diria depois.

 

BB King foi o último herói de sua geração na estrada e sua despedida começa a apagar uma era. Dos bluesmen em atividade, destes que salvam guitarras de incêndios, só sobrou Buddy Guy, hoje com 78 anos.

 

Desde o resgate de Lucille, ele não mais saiu da estrada por uma questão de sobrevivência. Quando lhe perguntaram se não acreditava que o fim da estrada estaria próximo, esta foi sua resposta. “Quero ser melhor, muito melhor do que sou hoje. Não se está morto até morrer. E eu serei um garoto até o dia de minha morte.”.

 

Seu projeto de vida parecia ser morrer sobre um palco. Aos 85 anos, BB fez sua última aparição no Brasil, com alguns shows, depois de ter anunciado por duas ou três vezes que deixaria de fazer turnês pelo mundo.

 

Era triste e visível perceber o tempo fazendo sua cobrança sem lhe dar nenhum desconto. BB falava por tempo demais e chegou a tocar duas músicas por duas vezes, fazendo com que seus próprios músicos se entreolhassem constrangidos. Mais triste foi em abril do ano passado, durante uma apresentação em um clube de Saint Louis, no Missouri.

 

Suas conversas se prolongaram tanto que algumas pessoas o vaiaram, pediram que parasse de falar, e outras foram embora. Seu empresário fez um comunicado de desculpas e conseguiu elevar o grau de humilhação de King. “Mr. King sofre de diabetes e acabou pulando uma das doses da sua medicação no dia do show.

 

Simplesmente foi uma noite ruim para uma das lendas vivas do blues dos Estados Unidos. Mr. King pede desculpas e, humildemente, a compreensão dos fãs”.

 

Culpar empresários por seu tempo de permanência na estrada pode ser perigoso. Sua alegria por manter-se em cena era visível e seu alimento parecia ser o contato com as pessoas.

 

BB King gostava de receber fãs no camarim antes e depois dos shows e usava dias livres para distrair-se tocando. Em 1999, em uma de suas vindas ao Brasil, decidiu dar uma coletiva de imprensa e fazer uma apresentação para crianças carentes em São Paulo. Entendia que a força de uma guitarra poderia salvar jovens de destinos tortuosos. E lembrava sempre de como a primeira delas caiu em suas mãos.

 

Os dias de domingo para Riley Ben King, seu nome antes de tornar-se Blues Boy King, eram de glórias e aleluia. Ir aos cultos protestantes era o que ele chamava de ponto alto na vida do “garoto franzino, de cabeça grande e com um fraco pelo sexo oposto”. Um fraco que lhe renderia 15 filhos, todos devidamente assumidos.

 

Aprendi que, quando uma mulher aparece dizendo que o filho é seu, ele é seu mesmo”. A maior prova de que Deus existia, para BB, se resumia em duas materializações da natureza. As mulheres que sentavam a seu lado nos bancos da igreja e a guitarra do pastor Archie Fair, o homem que operou um milagre de um tamanho que morreu sem fazer ideia.

 

Tudo começou no dia em que a mãe de BB King convidou o pastor Fair para visitar a família depois de um culto. O pastor entrou, passou a mão na cabeça de King e colocou a guitarra sobre sua cama, no quarto do garoto. Enquanto os adultos conversam sobre Deus, King via o diabo. “Eu fiquei de olho na guitarra deitada naquela cama, como se fosse uma garota que deseja ser acariciada. Ninguém estava olhando quando eu estendi a mão e, com todo o cuidado, acariciei a madeira”, narrou.

 

A sedução foi interrompida pelo pastor. “Vá em frente, pode pegar”. Archie colocou o instrumento no colo do garoto de sete anos e criou ali uma lenda. “Vou lhe mostrar alguns acordes. ” Nem precisava. Com três cordas, BB King definiria seu mundo. “Posso cantar um mundo de canções nessas três cordas”, dizia. Curiosamente, foi o que fez a vida toda.

 

BB é cria dos campos de algodões do Sul dos Estados Unidos. Suas lembranças eram habitadas pela voz do pai e do tio cantando os cânticos de plantation enquanto trabalhavam.

 

O primeiro blues-man que o fez estremecer foi o cego Blind Lemon Jefferson. “Ele e sua guitarra pareciam um só. Não se sabia onde acabava um e começava o outro”. Com um pouco mais de resistência, passou a admirar também Lonnie Johnson, seu segundo ídolo. “Ele era delicado, mais sofisticado”.

 

A guitarra limpa de BB King, de poucas frases que parece ter ficado ainda mais econômica com passar dos anos, faria uma escola de seguidores. Um dos primeiros artistas negros a cantar para plateias brancas no Sul dos Estados Unidos, um dos últimos blues-man a percorrer o mundo com solos de guitarra, sua ausência encerra uma era de guitarristas e coloca em discussão a sobrevivência de um gênero que, aos poucos, não tem mais referências vivas.

 

O mito que se tornou um Deus do Blues.

 

Todos nós temos a impressão de que vamos durar para sempre

 


(B.B. King)


BIO

Thiago Muniz tem 33 anos, colunista dos blog "O Contemporâneo", do site Panorama Tricolor e do blog Eliane de Lacerda. Apaixonado por literatura e amante de Biografias. Caso queiram entrar em contato com ele, basta mandarem um e-mail para:
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